ASPECTOS POLÊMICOS DA DESAPOSENTAÇÃO.
O
sistema de previdência dos trabalhadores brasileiros teve origem com a
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891, diploma que
previa a concessão de “aposentadoria” aos funcionários públicos em caso de
invalidez. O
referido dispositivo deu origem ao Regime Próprio da Previdência Social,
totalmente custeado pelo Estado.
Por
sua vez, o Regime Geral da Previdência Social teve como marco inicial a
publicação da Lei Eloy Chaves (Decreto Legislativo n° 4.682/23), norma que
criou as “Caixas de Aposentadoria e Pensões” nas empresas de estradas de ferro
existentes na época. Tal sistema de previdência era custeado através de
contribuições dos funcionários, das empresas e do Estado, assegurando
aposentadoria aos trabalhadores e pensão aos seus dependentes em caso de óbito
do segurado.
Portanto,
desde o princípio, o sistema do RGPS brasileiro possuía três características
fundamentais:
“(a) a obrigatoriedade de participação dos
trabalhadores no sistema, sem a qual não seria atingido o fim para o qual foi
criado, pois mantida a facultatividade, seria mera alternativa ao seguro
privado;
(b) a contribuição para
o sistema, devida pelo trabalhador, bem como pelo empregador, ficando o Estado
como responsável pela regulamentação e supervisão do sistema; e
(c) por fim, um rol de
prestações definidas em lei, tendentes a proteger o trabalhador em situações de
incapacidade temporária, ou em caso de morte do mesmo, assegurando-lhe a
subsistência”.
Com
base nas primeiras normas relativas à previdência social, podemos concluir que foi
a necessidade de amparo ao trabalhador acometido por doença, idade avançada ou
morte que ensejou à criação dos benefícios previdenciários que conhecemos nos
dias de hoje.
A
nossa Constituição Federal de 1988, em seu artigo 201, prevê expressamente a
proteção em face dos referidos infortúnios e demais eventos que podem ocorrer
na vida deste segurado:
Art.
201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de
caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que
preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a:
I
- cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada;
II
- proteção à maternidade, especialmente à gestante;
III
- proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário;
IV
- salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa
renda;
V
- pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e
dependentes, observado o disposto no § 2º.
Atualmente,
para a concessão das aposentadorias por tempo de contribuição (antiga aposentadoria
por tempo de serviço) e por idade, faz-se necessário o preenchimento de alguns
requesitos, os quais estão estabelecidos no §7º do artigo 201 da CF/88 e nos
artigos 48 a 56 da Lei de Benefícios da Previdência Social (Lei n° 8.213/91).
Assim,
somente após o cumprimento dos requisitos básicos para a concessão de uma
aposentadoria é que o segurado poderá dirigir-se até uma agência do INSS para ingressar
com o requerimento administrativo de concessão de um benefício previdenciário
em razão de seu tempo de contribuição ou idade.
As
regras para cálculo do benefício previdenciário de aposentadoria estão
previstas no artigo 29 da Lei de Benefícios, o qual dispõe que serão computados
todos os salários-de-contribuições de julho de 1994 até a competência de entrada
do requerimento (DER), sendo realizada a média aritmética de tais contribuições
com exclusão das 20% menores.
Caso
o benefício pretendido seja de Aposentadoria por Tempo de Contribuição (B42),
além da média aritmética, será aplicado o fator previdenciário ao
salário-de-benefício, que leva em consideração o tempo de contribuição, a idade
e a expectativa de vida deste segurado na data do requerimento.
Além
disso, ao final, será aplicado o coeficiente de cálculo, cujo valor será
determinado de acordo com o tempo de contribuição deste segurado, nos moldes
dos artigos 50 e 53 da Lei de Benefícios da Previdência Social.
Com
o advento da Lei n° 9.876/99, norma que instituiu a aplicação do fator
previdenciário, o valor da renda mensal dos benefícios foi reduzido de forma
significativa para a maioria dos aposentados que completaram os requisitos
básicos para concessão (idade e tempo) e ingressaram com o pedido na
Previdência Social.
Isso
porque os critérios adotados para composição do fator previdenciário são
compostos pela idade, pelo tempo de contribuição e pela expectativa de vida.
Assim,
uma segurada mulher com trinta anos de contribuição e quarenta e quatro anos de
idade, que teria direito ao montante de R$ 2.000,00 (dois mil reais) pelas
regras antigas, viu-se com uma aposentadoria correspondente a metade do valor
esperado, em razão da sua idade e de sua expectativa de vida, que a cada ano
aumenta no Brasil.
Frisa-se
que, pela legislação trabalhista, é possível o ingresso no mercado de trabalho
aos quatorze anos de idade, na condição de aprendiz. Sendo assim, uma segurada
mulher que tenha trabalhado ininterruptamente desde os quatorze anos terá
direito a uma aposentadoria por tempo de contribuição aos quarenta e quatro
anos.
Conforme
simulação realizada em 30/09/2014, essa segurada teria aplicado o fator
previdenciário equivalente a 0,484185, uma vez que sua expectativa de vida é de
34,70 anos.
Conforme
demonstra o gráfico a seguir, extraído do censo demográfico realizado pelo
IBGE, a expectativa de vida da população brasileira apresentou um aumento de
vinte e cinco anos ao longo dos últimos cinquenta anos:
Assim,
com o valor cada vez mais reduzido, os aposentados brasileiros não veem outra
solução senão a de retornar ao mercado de trabalho para manter o sustento da
família e a qualidade de vida.
Como
consequência, grande parcela dos trabalhadores ativos é aposentada e continua
vertendo contribuições à Previdência Social, eis que enquadrados como segurados
obrigatórios, nos moldes do §4º do artigo 12 da Lei n° 8.212/91 (Lei de Custeio
da Previdência Social), in verbis:
Art.
12. São segurados obrigatórios da Previdência Social as seguintes pessoas
físicas:
(...)
§
4º O aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social-RGPS que estiver
exercendo ou que voltar a exercer atividade abrangida por este Regime é
segurado obrigatório em relação a essa atividade, ficando sujeito às
contribuições de que trata esta Lei, para fins de custeio da Seguridade Social.
Ocorre
que não existe uma contraprestação da Previdência Social para essa categoria de
contribuintes, com exceção do salário-família e do salário-maternidade que são
estendidos ao trabalhador aposentado.
Em
que pese a extensão de tais benefícios previdenciários aos contribuintes
aposentados, sendo a idade avançada um fator determinante na concessão das
aposentadorias, tais benefícios perdem sua eficácia no plano dos fatos, eis
que, salvo raras exceções, dificilmente uma senhora aposentada irá ingressar
com pedido de salário-maternidade ou salário-família.
Por
outro lado, o trabalhador aposentado acometido por incapacidade temporária não
poderá receber o benefício de auxílio-doença em caso de afastamento superior a
quinze dias, sofrendo, assim, prejuízo no recebimento de seu salário e,
consequentemente, no sustento de sua família.
Por
sua vez, o auxílio-reclusão também não será devido aos familiares do aposentado
caso o mesmo venha a ser detido, por expressa previsão legal do artigo 80 da
Lei de Benefícios.
Da
mesma forma, o recebimento de aposentadoria constitui óbice ao recebimento de
auxílio-acidente, nos moldes do artigo 86, §3º, da Lei de Benefícios. Por
consequência, caso o trabalhador aposentado sofra uma redução na sua capacidade
laboral em face de acidente de trabalho ou de acidente de qualquer natureza não
poderá ingressar com o requerimento do benefício indenizatório por expressa
vedação legal.
Assim,
concluímos que não há qualquer contraprestação da Previdência Social ao
trabalhador aposentado que continua vertendo mensalmente suas contribuições
previdenciárias ao sistema de custeio.
Frisa-se
que o valor da contribuição previdenciária repassada pelo aposentado é
equivalente aos demais trabalhadores, chegando a 11% do valor do
salário-de-contribuição.
Até
a publicação da Lei n° 9.129 de 1995, o trabalhador aposentado poderia receber o
benefício denominado pecúlio na ocasião do novo afastamento da atividade,
previsto nos artigos 81 a 85 da Lei de Benefícios, o qual seria realizado em
pagamento único, no valor correspondente à soma das importâncias relativas às
contribuições vertidas, remuneradas de acordo com o índice de remuneração
básica dos depósitos de poupança com data de aniversário no dia primeiro.
Ocorre
que com a revogação dos referidos artigos, o trabalhador aposentado permaneceu
com a obrigação de contribuir com o sistema, porém sem nenhuma contraprestação,
conforme já abordado no presente artigo.
Se
por um lado a legislação limita o acesso por parte dos trabalhadores
aposentados aos benefícios previdenciários, por outro, permite aos mesmos o
exercício de atividade laboral, conforme a redação do artigo 168 do Decreto
3.048/99,
que regulamenta os benefícios previdenciários.
Diante
de tal situação, discute-se na atualidade a possibilidade da desaposentação.
Nas palavras doprofessor CARLOS ALBERTO PEREIRA DE CASTRO e JOÃO BATISTA
LAZZARI:
“Em contraposição à aposentadoria, que é o
direito do segurado à inatividade remunerada, a desaposentação é o direito do
segurado ao retorno à atividade remunerada. É o ato de desfazimento da
aposentadoria por vontade do titular, para fins de aproveitamento do tempo de
filiação em contagem para nova aposentadoria, no mesmo ou em outro regime previdenciário”.
Assim,
o trabalhador aposentado poderia requerer novo benefício, sendo consideradas as
contribuições vertidas à Previdência Social após a primeira jubilação. Tal
situação não está prevista em lei, contudo, são inúmeros os julgados que concedem
a nova jubilação ao trabalhador aposentado, com novo cálculo de aposentadoria.
A
autarquia previdenciária defende a impossibilidade de renúncia ao benefício em
face do disposto no artigo 181-B do Decreto 3.048/99.
Entretanto, não existe qualquer disposição equivalente na Lei n° 8.213/91,
razão pela qual os tribunais têm decidido que o decreto extrapolou os limites
da lei regulamentada, concedendo a desaposentação.
Ainda
no que se refere a sua (im)possibilidade, discute-se se é possível a desaposentação
sem devolução dos valores pagos na primeira aposentadoria. Considerando que o
segurado renunciou ao seu direito, teria ele que voltar ao status a quo ante para o novo requerimento?
Inúmeras
são as controvérsias que estão sendo submetidas ao nosso Judiciário brasileiro
no que se refere ao tema da desaposentação. Até então, os posicionamentos
firmados nos Tribunais Regionais Federais e nas Turmas Recursais têm sido
discordantes de acordo com a origem julgadora.
Contudo,
o nosso Superior Tribunal de Justiça tem firmado o entendimento da
possibilidade de desaposentação sem a devolução dos valores. Nesse sentido:
RECURSO
ESPECIAL. MATÉRIA REPETITIVA. ART. 543-C DO CPC E RESOLUÇÃO STJ 8/2008. RECURSO
REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. DESAPOSENTAÇÃO E REAPOSENTAÇÃO. RENÚNCIA A
APOSENTADORIA. CONCESSÃO DE NOVO E POSTERIOR JUBILAMENTO. DEVOLUÇÃO DE VALORES.
DESNECESSIDADE.
1.
Trata-se de Recursos Especiais com intuito, por parte do INSS, de declarar
impossibilidade de renúncia a aposentadoria e, por parte do segurado, de
dispensa de devolução de valores recebidos de aposentadoria a que pretende
abdicar.
2.
A pretensão do segurado consiste em renunciar à aposentadoria concedida para
computar período contributivo utilizado, conjuntamente com os salários de contribuição
da atividade em que permaneceu trabalhando, para a concessão de posterior e
nova aposentação.
3.
Os benefícios previdenciários são direitos patrimoniais disponíveis e,
portanto, suscetíveis de desistência pelos seus titulares, prescindindo-se da
devolução dos valores recebidos da aposentadoria a que o segurado deseja
preterir para a concessão de novo e posterior jubilamento. Precedentes do STJ.
4.
Ressalva do entendimento pessoal do Relator quanto à necessidade de devolução
dos valores para a reaposentação, conforme votos vencidos proferidos no REsp
1.298.391/RS; nos Agravos Regimentais nos REsps 1.321.667/PR, 1.305.351/RS,
1.321.667/PR, 1.323.464/RS, 1.324.193/PR, 1.324.603/RS, 1.325.300/SC,
1.305.738/RS; e no AgRg no AREsp 103.509/PE.
5.
No caso concreto, o Tribunal de origem reconheceu o direito à desaposentação,
mas condicionou posterior aposentadoria ao ressarcimento dos valores recebidos
do benefício anterior, razão por que deve ser afastada a imposição de
devolução.
6.
Recurso Especial do INSS não provido, e Recurso Especial do segurado provido.
Acórdão submetido ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução 8/2008 do STJ.
(REsp.
1.334.488/SC, Primeira Seção, rel. Ministro Herman Benjamin, DJe 14/05/2013).
Cumpre
salientar que nem mesmo nossa Constituição Federal de 1988 proíbe tal situação,
eis que garante a contagem recíproca do tempo de contribuição na administração
pública e na atividade privada, rural e urbana (art. 201, § 9º da CF).
Sendo
permitida a contagem recíproca do tempo de contribuição, razão maior para a
possibilidade de acréscimo na contagem do tempo de contribuição do período
trabalhado após a primeira jubilação.
Ao
contrário, o INSS sustenta que adicionar tal período é inviável na medida em
que a revisão do ato concessório só poderia ser realizada em caso de erro ou
fraude na concessão.
Afirma
ainda o caráter alimentar do benefício para invocar sua irrenunciabilidade e
irreversibilidade:
“Tem entendido o INSS que a aposentadoria é
irrenunciável, dado seu caráter alimentar, só se extinguindo com a morte do
beneficiário. E lhe atribui o caráter de irreversibilidade, por considerar a
aposentadoria um ato jurídico perfeito e acabado, só podendo ser desfeito pelo
Poder Púbico em caso de erro ou fraude na concessão”.
Ocorre
que, ao contrário do que sustenta a Previdência, o entendimento majoritário tem
sido no sentido de que a renúncia é possível, uma vez que ninguém poderá
permanecer aposentado se assim não desejar. Além do mais, o segurado abre mão
do benefício que estava recebendo em prol de um mais vantajoso, considerado o
tempo trabalhado após a primeira jubilação.
Salienta-se
que não há que se falar em renúncia ao tempo trabalhado, tendo em vista que o
trabalhador jamais poderá optar em renunciar ao tempo de contribuição, pois esse
tempo está incorporado ao seu patrimônio jurídico.
Além
disso, outro argumento importante utilizado pela procuradoria do INSS em teses
previdenciárias tem sido o equilíbrio atuarial do sistema e o suposto déficit previdenciário.
Inclusive,
tal argumento foi utilizado em julgamentos de suma importância na matéria
previdenciária, como no Recurso Extraordinário 626.489, que reconheceu o prazo
decenal para revisão de benefícios mesmo para os que haviam sido concedidos
antes Medida Provisória 1.523, de 28.06.1997.
Atualmente,
o tema 503 (Conversão de aposentadoria proporcional em aposentadoria integral
por meio do instituto da desaposentação) teve sua repercussão geral reconhecida
em 18/11/2011 e o Recurso Extraordinário n° 661.256, de relatoria do Ministro
Roberto Barroso, está aguardando pauta para julgamento no Supremo Tribunal
Federal.
Em
que pesem os argumentos lançados pela autarquia previdenciária, na atual
situação econômica brasileira, os aposentados não podem permanecer fora do
mercado de trabalho, usufruindo o valor de sua aposentadoria. Pelo contrário,
os aposentados permanecem trabalhando para aumentar o valor da renda mensal e
manter o sustento da família que, ao passar dos anos, está cada vez mais
elevado.
Apenas
a título de argumentação, é fato notório que o reajuste dos benefícios
previdenciários não acompanha a inflação, eis que, atualmente, quem percebe uma
aposentadoria no valor de um salário mínimo detém um poder de compra maior e um
reajustamento mais benéfico de quem percebe uma aposentadoria num valor mais
elevado.
Soma-se
a tudo isso o fato de que a legislação previdenciária muda constantemente,
razão pela qual o segurado que preenche os requisitos para concessão de aposentadoria
tende a não esperar o seu afastamento do mercado de trabalho para exercer o seu
direito, sob pena de que as regras se alterem e o seu direito de aposentadoria
se modifique, tal como ocorreu em 1999 com a instituição do fator
previdenciário e a imposição das regras de transição.
Todas
essas circunstâncias merecem a atenção dos julgadores, eis que os trabalhadores
aposentados, na maioria das vezes, retornam ao mercado de trabalho em face da necessidade
de manter o sustento da família, cujo valor da aposentadoria somente não
garante.
Diante
dos argumentos acima delineados, que revelam as razões pelas quais os
aposentados retornam ao mercado de trabalho e a escassa proteção previdenciária
garantida por lei a essa categoria de trabalhadores, é que se faz imprescindível
a possibilidade de desaposentação, como forma de contraprestação ao aposentado
que verte contribuições e não tem o amparo da Previdência Social.
Por Andressa Abreu da Silva, advogada.